Crianças em risco

Tatiana Santos, psicóloga clínica, ajudou-nos a perceber os problemas que enfrentam as crianças da região e o que pode ser feito contra essa tendência. Revelamos, ainda, dados exclusivamente cedidos ao Notícias da Zona por várias entidades
TODOS sabemos que as crianças representam o futuro e é nelas que são depositadas as maiores esperanças. É por isso que cada um de nós tem o dever de as proteger, para que nenhum trauma ponha em risco o seu natural desenvolvimento.Tatiana Santos, psicóloga clínica e colunista do NZ na temática Saúde & Beleza, falou-nos sobre a sua experiência na área de apoio a crianças problemáticas e em risco social, inserida num contexto de IPSS – Instituição Particular de Solidariedade Social, no concelho de Setúbal. O local exacto não é relevante, já que o importante é que tais entidades existam para fazer a diferença, junto de quem precisa. Segundo Tatiana, o trabalho que efectuou nesse âmbito, passou por «identificar quais as necessidades locais, avaliar as famílias e crianças, de forma a perceber qual a melhor atitude a tomar para que o acompanhamento seja feito, quer por sessões de educação parental ou sinalizando o caso à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens quando nada mais há a fazer. Contactei mais com crianças do que com adolescentes, uma vez que a instituição está mais direccionada para meninos entre 1 e 16 anos». A tipologia dos casos era variada, encontrando-se crianças com «todo o tipo de carências, nomeadamente, económicas e afectivas. Contactei com vítimas indirectas de violência conjugal entre os pais e com vítimas directas de violência por parte dos pais. Quanto a abusos comprovados, não soube de nenhum, embora existissem suspeitas. Para além do abandono permanente, também havia casos de abandono temporário, que são mais comuns do que pensamos, e em que as crianças ficavam na rua, durante o horário laboral dos pais. Dormitavam nos passeios, não eram alimentadas e nem tinham sinais de cuidados de higiene».
Marcadas para sempre
Sobre as conclusões que retirou dessa sua marcante experiência, a psicóloga percebeu que existe ainda muito a fazer, «sobretudo em relação à violência doméstica. A partir do momento em que passou a ser considerada como um crime público, a primeira coisa a fazer é alertar as pessoas, ou seja, educar um pouco a mentalidade da comunidade para o facto de terem o dever de sinalizar a existência destes casos. Muitas vezes, as vítimas, sejam crianças ou adultos, por questões emocionais com o agressor – poderá ser o pai, mãe ou outro familiar – não querem denunciar a situação. Isso sucede, sobretudo, com crianças e jovens, por uma questão de dependência emocional e, também, financeira. É importante que os vizinhos estejam atentos. Não importa se estamos a intrometer-nos na vida dos outros porque, na verdade, estamos a falar de um crime e temos de perceber que é algo que fica marcado na mente das crianças. Muitas delas ficam a um passo da morte, quando essas situações abusivas e violentas são demasiado graves».
Um alerta dado demasiado tarde, ou nunca concretizado, significa menos uma criança com futuro, até porque o mais simples dos traumas é suficiente para marcar uma criança pela negativa. «São traumas que nunca se apagam. Dependendo da gravidade da situação, poderá ser corrigido ou não, mas a cicatriz fica lá e, em casos graves, afectam o desenvolvimento não só emocional mas, também, das capacidades de aprendizagem». A título de exemplo, relembra algumas crianças que acompanhou de perto «que não sabiam falar e, por isso, comunicavam como animais. Isto porque, na sua curta vida, ninguém falou com elas».
Para Tatiana, a falta de apoio e a inexistência de uma intervenção rápida são prejudiciais, sobretudo em casos de violência, que dão azo à criação de «um ciclo de violência transgeracional, em que o modelo familiar – que já era violento – é perpetuado em relações futuras».Questionada sobre a existência de alguma semelhança entre as dezenas de casos passados em Setúbal e o concelho de Sesimbra, a psicóloga considera que existe, de facto, um risco social, mas «terá mais a ver com as necessidades económicas, devido ao crescendo do desemprego. Acredito que não existam tantos casos ou, pelo menos, nunca tão graves quantos os que existem no concelho de Setúbal».

Números que não mentem
Contactado pelo NZ, Daniel Cotrim, psicólogo assessor técnico da direcção da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, revela-nos que os dados oficiais existentes relacionados com crianças, durante o primeiro trimestre de 2009, «só estarão disponíveis em Julho», mas confirma que «a maioria dos casos que nos são apresentados reflecte uma violência doméstica».
O NZ apurou, ainda, que a percentagem de vítimas no distrito de Setúbal foi maior no escalão etário entre os 11 e os 17 anos, com 16 casos sinalizados, sendo que dos 6 aos 10 anos verificaram-se 11 casos. Já dos 4 aos 5 anos existiram 6 casos e, por último, três casos dos zero aos 3 anos de idade. Os casos que claramente envolveram crianças dizem respeito a subtracção de menores (2 ocorrências), violação da obrigação de alimentos (11) e prostituição infantil (1).
A Comissão de Protecção de Crinaças e Jovens (CPCJ) do Seixal enviou-nos toda a documentação necessária, relativamente ao ano de 2008, fazendo a distinção entre as seis freguesias do concelho. Ressalvando que cada processo corresponde a uma criança ou jovem, foram transitados 350 processos de 2007 para o passado ano; foram 83 reabertos; 474 instaurados; 142 arquivados liminarmente e 332 definitivamente arquivados. Quanto à tipologia de perigo, foram sinalizados 221 casos por negligência; 45 por maus-tratos físicos; 55 por maus-tratos psicológicos; 57 de abandono escolar; 50 por exposição a modelos de comportamento desviante; 16 devido a prática de facto qualificado como crime; 9 casos por abuso sexual; 3 por abandono; 2 relativos a mendicidade e, por fim, 1 devido a estupefacientes.
A nível de freguesias, a Amora destaca-se pelo maior número de casos (cerca de 150), na sua maioria por questões de negligência, uma realidade comum às restantes freguesias. Seguem-se Arrentela (quase 120), Corroios (cerca de 90), Fernão Ferro (cerca de 40), Paio Pires (menos de 30) e Seixal (cerca de 20).
Em conversa com Madalena Ramos, presidente da CPCJ de Setúbal, o papel destas comissões é «alertar a comunidade para que nos possam ajudar a proteger todas as crianças e jovens». Enumerando os casos, no ano de 2008, esta CPCJ «acompanhou 1517 processos, dos quais 395 foram instaurados. De 2007 para 2008, transitaram 1075; arquivámos 407 e transitaram para este ano 1110, mais aqueles que, entretanto, vamos abrindo». Referiu, ainda, que «as escolas foram quem mais sinalizou o problema, tendo apresentado 427 casos; no âmbito da Saúde foram 219; os pais apresentaram 185; as vítimas apenas deram origem a 7 casos. Familiares, vizinhos e a própria CPCJ assumiram as outras denúncias».Tentámos, ainda, recolher informações por parte das CPCJ de Almada e Sesimbra e do Gabinete de Apoio à Vítima de Setúbal, mas não obtivemos respostas até ao fecho desta edição.


Setúbal não será, certamente, o distrito mais problemático em todas as vertentes do crime contra menores, mas há que lembrar que os pequenos números também representam vidas de jovens indefesos. Na sua grande maioria, não conseguem gritar por ajuda. Resta-lhes, apenas, o silêncio da dor que sentem.

Texto de: Sandra Mendes
Publicado in Notícias da Zona
Imagens: DR

Comentários

  1. Obrigada pelo seu comentário. Infelizmente, depois de vários anos após esta publicação, continua a ser uma triste realidade...

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